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Palmas para a paisagem que restou

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O Pão de Açucar que Marc Frerres viu caindo a prumo na baía no século XIX

O Rio de Janeiro exagerou no sábado passado. Fez um dia de sol sem nuvem, azul varrido e verão ventilado pela brisa que vinha do mar frio. Parecia de encomenda para ir ao Pão de Açúcar, a pretexto – é claro – de mostrá-lo a gente de fora.

Carioca que se preza só pega o bondinho com turista empurrando. Pior para ele. Não há ponto-de-vista como o Pão de Açúcar para apreciar o novo Plano Diretor do Rio de Janeiro. Tem até lugar marcado para isso, lá em cima. Anos atrás, o guia da Lonely Planet botou no mapa do mundo o ponto do mirante virado para as montanhas. E ele virou arquibancada de pôr-do-sol.

Quem só faz isso de vez em quando acaba vendo muito mais que o entardecer. Enxerga favelas em quase todas as encostas, lanhando os morros ainda verdes. E elas não davam tanto na vista quatro ou cinco anos atrás, quando duas italianas impuseram aos anfitriões o mesmo programa. Na época, o que chamava a atenção era a torre Rio-Sul, que há mais de 30 anos furou gabaritos e posturas urbanas para tirar o incorporador da insolvência.

Ele continua na mira do sol poente. Mas agora são as favelas que brigam feio com a topografia, fatiando a mata das encostas. Foi nisso que deu o Rio de Janeiro ter um ambientalista na secretaria de Desenvolvimento Urbano, o engenheiro Haroldo Mattos de Lemos, que despachava queixosos dizendo que favela não era problema, e sim solução.

Solução ambiental elas certamente não eram. Mas na década seguinte foram promovidas a “comunidades”, e se tornaram politicamente um assunto tão bem resolvido que o promotor Carlos Frederico Saturnino, encarregado de velar o meio ambiente na cidade, passou uma década falando sozinho, ao insitir que a paisagem do Rio de Janeiro não podia ser privatizada pelas ocupações irregulares por ser patrimônio cultural da população.

É isso que diz agora o Plano Diretor. E bastava aquele cair da tarde no Pão de Açucar para enxergar como ele, embora “novo”, chega atrasado. Não só pelos dez anos que levou tramitando pela Câmara Municipal, como se não fosse assunto urgente. Nem pela favelização. Esse é um capítulo recente na longa história de malversação do cenário natural, que a cidade começou a demolir antes mesmo de ser fundada. Ela nasceu junto ao morro Cara de Cão, ao pé do Pão de Açúcar. E de lá, olhando para baixo, cadê a lagoa que o padre José de Anchieta conheceu em 1565, quando o capitão Estácio de Sá levantou as paredes inaugurais do Rio de Janeiro?

A lagoa tinha “uma légua de água ruim”, escreveu o jesuita. E a primeira batalha dos fundadores não foi contra os franceses e tamoios, mas com terra e pedra para sepultá-la “de todo”. Dela não restou nem a memória. Assim como não há sinal visível da passagem pelo planeta das lagoas do Desterro, da Sentinela, da Pavuna e da Lampadosa, que acabaram embaixo da praça Tiradentes, do Largo da Carioca, do Passeio Público, da Lapa e da Glória.

Nossa guerra pela conquista do território passou batida na futura Zona Sul pela lagoa da Panela, que virou Largo do Machado. E só parou na Rodrigo de Freitas depois de lhe tomar um terço do espelho d’água. Como elas, desapareceram na febre do bota-abaixo que deu ao Rio o título de Cidade Maravilhosa. Só nas primeiras décadas do século XX desapaeceram debaixo de aterros 36 ilhas, 56 praias e 9 enseadas da Baía de Guanabara. E, com elas, o morro do Castelo, que era o centro histórico do Rio de Janeiro.

Eram ilhotas sem importância? Não foi o que comentou no século XVII o inglês Richard Flecknoe, que conheceu a baía “salpicada de ilhas verdejantes de diversos tamanhos”. Outro inglês, o comerciante John Luccock, que vive na cidade no começo do século XIX, descreveu ilhas cobertas de copas floridas, lastimando “a verdadeira fúria de tudo o que se pareça com uma árvore”.

Se os executores do Plano Diretor quiserem levar a sério a tarefa de tratar a paisagem como patrimônio inalienável do Rio de Janeiro, deveriam começar pela instalação de placas lembrando cada marco natural que a cidade desterrou e esqueceu. Senão, o que restou continuará parecendo inexaurível aos deserdados. Como o por-do-sol que os turistas aplaudiram no Pão de Açúcar, sábado passado.


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